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Time Machine - Blog Posts

4 years ago
4 years ago

I want to build a time machine so that I can go back to medieval times. I would take a CD with me. The people would think I was some sort of prophet or God. I would give them the CD. They would keep it in pristine condition because it is sacred and religious, but they don’t know what it is. Until the first CD player is invented, they play it and it is Rick Astley’s Never Gonna Give You Up. They realize years later that they had gotten Rick Rolled by God.


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RAWconcrete Is About A Young Boy Traveling Through Space And Time Across The Universe, A Game Featuring

RAWconcrete is about a young boy traveling through space and time across the universe, a game featuring innovative combat mechanics (Transmutator Gun), photo-realistic graphics, realistic animations and audio, and above all, a very interesting story.


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10 years ago

Sob o Olhar da Eternidade (Final)

Desta vez o texto pediu ao autor para ser um pouco mais profundo, mais amplo, e levou mais tempo a ser escrito. De qualquer forma chegamos ao fim desta jornada juntos, e descobrimos, enfim, que Milton é gente, que sonha, sofre, erra, se perde e se acha, mas que, se deseja algo de bom ao mundo, aos outros, então não pode ser louco, afinal. Quero, também, te agradecer, profunda e sinceramente. Você que veio até aqui comigo, me desculpe onde não atingi todas as suas expectativas, e obrigado pelos momentos em que eu pude ter o privilégio de te divertir e te comover de algum modo. Muito, muito obrigado. Agora, que se ergam as cortinas de sua poderosa imaginação, e adiante na leitura, que o alimento para sua curiosidade está logo aqui embaixo!

Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Leia a Parte 3 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Hic Sunt Dracones

Desta vez era o fim da tarde, e Milton Steinberg estava novamente em frente ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca, pensando em como entrar. Primeiro ponderou que, feito nos filmes, era só se deixar capturar.

— Meu nome, — Disse Steinberg ao porteiro, falando pausadamente, gravemente, para ser entendido de primeira — é Steinberg, Milton Steinberg.

O porteiro, depois de olhar para o sujeito na sua frente por um longo momento, enfim disse:

— E?…

Milton voltou para a rua e ficou olhando o prédio, se sentindo amargurado, mas também um idiota. O porteiro não estava avisado para capturar qualquer Steinberg que aparecesse, aquilo não era roteiro previsível hollywoodiano… Ou era? Então Milton voltou e tentou dizer, na portaria, que precisava falar com o Doutor Rubens Castilho Lewroy. Obviamente o porteiro informou que Castilho não estava, o físico havia pedido umas férias, ele achava, e que se quisesse o visitante poderia deixar recado para quando o Doutor voltasse, era só dizer.

Novamente Milton estava na rua estreita em frente ao prédio do CBPF, ponderando. O que pretendia fazer se fosse capturado e levado aos seus algozes? Como parar tudo aquilo? Será que, ao entrar, descobriria que não ocorreu explosão alguma e que, de fato, ele tinha ficado muito doente, completamente louco? Caminhou, tenso, pela rua, e encontrou um pequeno bar. Bebendo uma cerveja, tentou chegar às respostas, talvez a uma linha de ação.

Nada.

No entanto, em certa altura de suas elocubrações, imaginou como uma explosão naquele prédio federal não foi noticiada?

Neste instante seu celular voltou a tocar. Atrapalhadamente, enquanto se lembrava mais uma vez de filmes que viu, e tentava arrancar a bateria do celular para não ser localizado, se deu conta de que havia tentado ser capturado, e, olhando para o smartphone por um segundo, sentindo-se novamente idiota, atendeu.

— Steinberg? — Disse a voz no aparelho.

— Rubens?

— Eu. Conseguiu se mandar?

— Nós?… Cara, eu te vi mesmo hoje?

— Viu. Você conseguiu fugir também?

Após um longo e comovido suspiro, afinal a ligação de Lewroy indicava que provavelmente ele, Milton, não estava louco, Steinberg foi pondo a mão perto da boca e baixando o tom de voz, para tentar não ser ouvido por mais ninguém, além de Castilho, e por fim foi dizendo ao celular:

— Sim. Mas não suporto mais isso. Tô aqui no seu trabalho, quero encarar. Quero entrar, destruir a tal máquina, ou morrer tentando. Essa sensação que trago comigo está me enlouquecendo, cara! Tô fazendo coisas que não faria, agredindo e sendo agredido! Tô com medo de estar doido…

— Não está.

— Graças a Deus! Mas então eu tenho que entrar mais ainda, tenho que mudar tudo, não quero ser preso, não adoro minha vida, mas não quero que ela fique pior!

— Calma… Entendo…

Silêncio. Após esperar um tempo para que Rubens falasse mais, Steinberg disse, em tom suplicante:

— A experiência… Envolvia o que chamamos de correlação inversa de causa e efeito entre partículas. Usando o entrelaçamento quântico, pretendíamos provar inequivocamente que partículas espalhadas pelo espaço e tempo podiam trocar informações entre si, ou seja, causar efeitos entre si, tanto para frente, quanto para trás no tempo. Tem haver também com uma pesquisa sobre o Universo holográfico, não vou entrar em detalhes. Os equipamentos funcionam em vários centros de pesquisa pelo mundo, em câmaras no subsolo, e em dias alternados, medindo depois de cada teste seus efeitos uns sobre os outros. A Doutora Alice, que entrou recentemente para o projeto, sugeriu alinhar todos os labs e pôr as máquinas para funcionar ao mesmo tempo. É quando a explosão ocorre, às sete e meia da manhã, de uma mesma quinta-feira. Sempre.

— Então vocês?…

— Sim, já sabemos. Um camarada meu, o José Gustaf, sugeriu inclusive uma solução, mas o cara foi despedido, nunca mais soube dele. Acho que ele…

Mais uma pausa.

— Acha o quê?

— Alice tá metida com alguém, vi uns e-mails dela pra alguém na Finlândia. Acho que querem que tudo fique assim.

— Não!

— Escute, Iceberg, minha carona vai sair aqui. Vou jogar fora esse celular que estou usando. Não tenta me encontrar, por favor, meu amigo. E sai daí!

— P-peraí! Peraí, me diz como eu posso acabar com isso!

Silêncio. Quanto Milton já achava que Rubens havia desligado, este último diz:

— Minha sala. Meu computador. Pressione éfe sete na inicialização, tem um dual boot ali, entra no segundo sistema. Lembra do programa infantil que assistíamos na sua casa, Iceberg? Capitão Asa, e o jogo em que você sempre foi fera. É a senha. Adeus.

Sem dúvida, agora, Rubens havia desligado. Afastando o celular, os olhos de Milton se perderam no infinito. Ainda precisava entrar, mas agora tinha uma chance, sabia de uma boa pista. Certamente Rubens havia dito a ele como entender e destruir o experimento que o estava enlouquecendo.

Levantou-se, no impulso de voltar à portaria do CBPF, mas foi interrompido.

— Cara, vai esquecer seu telefone em cima do balcão! — Disse a senhora gorducha e com ares de pessoa simples e muito objetiva.

— Obrigado. — Respondeu Milton pegando o aparelho que, sem perceber, ele havia largado no tampo do bar. Estranhamente notou que o smartphone estava zerado de bateria. A quanto tempo?… Piscou, não podia entrar naquela paranóia de novo, ele havia conversado sim, com Rubens, e agora sabia o que fazer, precisava entrar no prédio, precisava chegar à sala de Lewroy.

Caminhou resolutamente pela rua, e estava entrando no prédio novamente quando ouviu alguém dizer:

— Oi, vizinho?

Inacreditavelmente Rheny Rousseau estava quase ao seu lado, entrando no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas junto com ele. Aturdido, Milton ficou olhando para ela, que pareceu ler seus pensamentos e explicou, sorrindo, encantadoramente:

— Sou advogada. Tenho um cliente aqui que preciso ver para pegar umas assinaturas. — falou, levantando com o polegar a alça de uma pequena mas aparentemente cheia mochila que trazia no ombro. Ela estava elegantemente vestida, com um daqueles terninhos que deixam as mulheres ainda mais atraentes, ao menos na opinião de Steinberg, que, por sua vez, disse:

— Ah, hum, desculpe, eu não esperava te ver agora.

— Foi mal, está ocupado? Trabalha aqui? — Rheny disse, ficando mais séria, parecendo ligeiramente constrangida.

— Não se desculpe! É… É muito, muito legal mesmo te rever, quero dizer, eu queria isso, quer dizer… Te ver de novo.

Ela sorri novamente, francamente, e retruca:

— Eu também queria. Vai entrar?

— Onde?

Ela aponta, divertida, para a portaria do CBPF.

— Ah! Sim. Preciso. Mas não…

— Não?

— Quero dizer, não vão me deixar entrar. Não, eu não trabalho aqui, um amigão meu de infância trabalha, ele… Deixou um documento muito importante pra mim na sala dele, mas saiu de férias, esqueceu de avisar aos caras. Mas preciso mesmo, preciso dar um jeito de entrar…

Eles se entreolham por um instante, Steinberg ameaçou dizer algo, mas parou. Rheny então disse:

— Eu… Desculpe, gostaria de ajudar, mas… Prédio Federal, advogada, problemas. — Deu de ombros, sem jeito, e sorrindo de lado.

— Nãããão! Não, não, quê isso! Eu não ia te pedir isso. — Ele podia sentir o seu rosto se ruborizando.

Rousseau lhe estendeu a mão, que ele apertou, e ficaram assim, de mãos dadas e se olhando, ambos um tanto sem jeito, até que a moça disse:

— Posso lhe pedir uma coisa?

— Sim?

— Não desapareça.

Após mais um ligeiro momento, ainda de mãos dadas, estas se afastam, e o homem diz, com convicção:

— Prometo.

Ao ouvir isso, ela acena, com uma graça incomum naqueles dias, e vai se afastando. Ele, no entanto, a chama, e lhe diz:

— Como eu não vou desaparecer? Me dá seu telefone?

Rheny, ainda suavemente sorridente, faz que sim, e diz o número. Ele saca o celular, para anotar no próprio aparelho o número dela, mas está sem carga. Então ele busca, dentro da sua pasta tiracolo, desajeitadamente, algo em que escrever, mas Rheny é mais rápida, e tira uma caneta e uma folha de papel, uma fotocópia de algum documento, de uma das pastas que carrega em sua própria bolsa, anotando seu número no verso que estava em branco, enquanto vai dizendo:

— É cópia de um processo antigo, sem informações pessoais de clientes, essas coisas. Enfim, não tem importância. Tome, — ela entrega a folha de papel a Milton — Me liga mesmo. Como você disse, precisamos nos proteger, uns aos outros, e… Poxa, por favor me desculpa, eu sinto muitíssimo mesmo não poder te ajudar a entrar aqui…

— Nem pense mais nisso. Eu vou ligar pro meu amigo agora, e resolver isso, fica tranquila, mas… — Ele não acreditou quando aquilo saiu de sua boca, pois costumava ser muito tímido para essas coisas, só que acabou dizendo assim: — Que tal um cinema e um bom bate-papo, pra me compensar?

— Fechado! — Diz ela, erguendo o polegar enquanto caminha em direção ao balcão do porteiro.

Steinberg ficou olhando. Estava longe demais para ouvir o que se dizia, mas viu Rheny se identificar, e entrar. Era uma tarefa difícil, para ele, não se deixar hipnotizar pelo sensual e elegante movimento dos quadris da moça, enquanto ela seguia saguão adentro. Ele sorriu, sob efeito, novamente, de sua timidez. Mas, sem dúvida, era fácil gostar tanto da pessoa Rheny, quanto da mulher.

Depois que ela subiu em um elevador, o porteiro deu um breve olhar desinteressado em direção à Milton, e voltou sua atenção ao computador em que registrava as pessoas que entravam. O homem, provavelmente, matava o tempo jogando paciência ou algo assim.

O jogador de Tetris, por sua vez, ficou olhando do papel com o telefone de Rheny para a portaria, e de lá novamente para o papel. Estava se sentindo muito bem por ter conseguido o telefone da sua vizinha, especialmente por achar cada vez mais que ela era uma mulher muito legal, delicada, charmosa, inteligente. Rara.

Mas um sentimento de tristeza assomou em seu coração, mais forte até do que a agonia de saber que o mesmo dia se repetia sem parar, e ele murmurou, entre os dentes:

— Eu nunca mais vou vê-la… Não vai haver futuro para nós… Para ela…

Oprimido por aquela súbita certeza, Milton sentiu o peito ferver de agonia, e seus olhos, por um instante, marejarem. Precisava fazer algo… Precisava…

Então tomou um decisão. Ergueu a folha que recebeu da moça e foi caminhando, resolutamente, em direção à portaria. Assim que chegou lá, o porteiro ergueu os olhos da tela do computador, onde devia estar jogando cartas, e disse:

— Senhor… Milton, eu acho.

— Isso! Milton Steinberg. Eu estava esperando a Doutora Rheny Alencar Roussel, a advogada que acabou de entrar, para pegar com ela um documento, — acenou a folha que trazia na mão — só que ela me deu o documento errado, e vai precisar muito deste aqui. Pode chamar ela de volta, por favor?

O porteiro, que certamente havia percebido os dois conversando na entrada do prédio, disse, sorrindo e talvez querendo voltar depressa ao seu joguinho:

— Ela não deve ter chegado à sala trezentos e quinze ainda. Me empresta sua identidade. Mais fácil o senhor ir atrás dela.

Em menos de dez minutos, no entanto, Milton saltava do elevador no andar onde, se ele lembrava direito, ficava a sala de Rubens. Não demorou a encontrar o recinto, confirmando o nome do amigo numa plaqueta presa à porta. Testou a maçaneta. Aberta.

Entrou e acendeu a luz, indo a passos largos até a escrivaninha de Lewroy, ligando o computador, e assim que os caracteres de inicialização da máquina começaram a aparecer na tela, Milton pressionou, com força, a tecla marcada com os caracteres “F7”, e esperou. Linhas de comandos subiam, parecendo intermináveis, enquanto a máquina se preparava para trabalhar. Steinberg chegou a pensar que o dual boot não existia, mas, subitamente, o monitor exibiu uma tela rústica, feita de caracteres, pois os sistemas gráficos do computador ainda não estavam disponíveis, pedindo ao usuário que escolhesse entre dois sistemas operacionais. Digitando “2” e premindo a tecla “enter”, Milton aguardou mais um pouco. Devia ser um computador mais antigo, mais lento. Finalmente a tela de “login” do sistema operacional surgiu, com seu fundo gráfico e colorido, e seus campos para o usuário digitar nome e senha. O nome já estava preenchido com “Rubens Lewroy” e a senha Milton digitou “capitaoasatetris”, mas recebeu uma mensagem de erro. Tentou de novo, desta vez com acento, “capitãoasatetris”, e o sistema se abriu, ao mesmo tempo em que a porta da sala se abria também, e Doutora Alice Moretti entrava.

— Milton! Que interessante tê-lo aqui, de volta. Não. Não precisa se levantar, e por favor, não se mexa. Estes cavalheiros aqui podem ficar agressivos.

Um dos três homens de terno, que entraram atrás de Alice, era o cara em que Lewroy havia dado um pontapé nos testículos. Na ausência de Rubens, o olhar intenso do sujeito indicava que Steinberg serviria bastante bem para ele extravasar sua raiva com o que havia ocorrido. Na verdade o homem dos testículos feridos já erguia as mãos, empunhando algo. Com uma última espiadela para o computador na sua frente, Milton percebeu que não havia meio fácil de fechar o sistema, a não ser desligando a máquina toda, apertando o botão “on/off” do aparelho. Lançou a mão na direção do botão, e ouviu um estalo assustador, enquanto sentiu a eletricidade de uma arma de choques percorrer seu corpo. Convulsionou intensamente, e desabou no chão, sendo abraçado por uma escuridão cinzenta, enquanto ouvia, cada vez mais longe, uma mulher dizer “já chega, Jack!”. Era Moretti.

— Como assim? — Perguntava uma mulher, em algum lugar próximo, enquanto Milton recobrava a consciência. Novamente ele levou meio segundo para concatenar a voz com suas lembranças, e entender que era mais uma vez Alice falando, perguntando algo, com intensidade, para alguém, que respondeu a ela com uma voz masculina e desconhecida:

— Pouco depois que o computador do Doutor Lewroy foi ativado, lá em cima, depois que eu te avisei que ele foi ligado, na verdade, um programa rodou, acessou a rede do prédio, e alterou a programação da Armillary, fazendo com que ela…

— Pára a Armillary agora! E desliga esse computador!

— Já parei, olha, desconectei um cabo de força primário. Por sorte eu estava calibrando ela, lá dentro, quando entendi que ela estava sendo reprogramada. A Armillary não vai a nenhum lugar, enquanto aquele cabo não for reconectado. E o computador do Rubens, eu preciso analisar, ele tem todos os cálculos do Doutor Gustaf, que o programa dele usou para alterar as Armillarys.

— Espera. O computador era do Rubens, mas os cálculos e o programa invasor são do Gustaf? E o que esse programa fez?

— Sim, são do Gustaf. Os doutores Lewroy e Gustaf também tinham seus segredos. O software invasor programou, via a nossa máquina, todas as Armillarys para se ativarem juntas de novo, mas reposicionou o circuito cinemático; vou revisar os cálculos dele pra ver qual o objetivo, mas tenho quase certeza que ele conseguiu um modo de anular a onda que criou o loop. Ei, eu acho que seu convidado acordou. Esse camarada é físico?

Miltou abriu, afinal, os olhos, e percebeu que estava em um tipo de laboratório, algum galpão cheio de equipamentos de engenharia. Depois se deu conta de que era o subsolo. Ele estava no subsolo onde acontecia a experiência que deu o nó no espaço-tempo. Sua mente entorpecida captou uma fímbria de ideia que estava saindo, sem ele perceber claramente, por sua boca antes até de ele despertar: o tempo não se curva sozinho, o espaço, e a matéria, se curvam com ele.

— Ele anda balbuciando algo parecido com o que Gustaf dizia, que a Armillary, ao travar o tempo, adiaria nossas mortes, mas se uma incerteza não nos pegasse, o acúmulo de massa, causado pelo refluxo do espaço-tempo, ultrapassaria dez elevado a cinquenta e seis gramas rapidamente, dentro de nosso horizonte cósmico, e eventualmente viraríamos um buraco negro.

— Espaço… Acumula… Matéria… — Murmurava Steinberg, pois essa ideia lhe ocorreu enquanto flutuava na escuridão plúmbea: se espaço e tempo formam a mesma coisa, e carregam em si a matéria, será que repetir vezes sem fim o tempo não acaba aumentando a matéria naquele ponto do Universo?

— Acho que Milton, que a propósito é leigo, não teve tempo de ler nada. Rubens deve ter lhe dito isso. Mas essa teoria faz algum sentido? — Perguntou Alice Moretti, enquanto olhava, tensa, para Steinberg. Havia ao lado dela um homem vestindo o clássico jaleco branco de um pesquisador, com olhos intensamente perspicazes. Mais ao fundo, se via uma esfera maior que um homem alto e de pé, feita de anéis entrelaçados, que deixavam o centro oco aparecendo nos vãos entre estes anéis, e tendo toda a sua superfície aplicada com versões gigantes e muito sofisticadas do que pareciam ser velas automotivas, de onde pendiam diversos cabos, alguns grossos, provavelmente cabos de energia, outros mais delicados, possivelmente de dados. Esta, pensava Steinberg, devia ser a tal Armillary que era mencionada a torto e a direito. O nome não lhe era estranho, e lembrava algo que ele achava ter visto na Wikipédia.

— Agora que encontramos os cálculos de Gustaf, e eu consegui dar uma olhada neles, sim, a matemática está bastante robusta. Quero revisar, mas se não tivesse tempo, apostaria que está certa.

— Como uma pilha infinita de cópias… — Disse Milton, sua voz gradativamente ganhando firmeza e subindo de tom. Ele já estava bem desperto, e percebendo que estava sentado em uma cadeira de metal fixa em uma parede, à qual ele jazia preso por uma algema, também metálica. Steinberg prosseguia dizendo: — Eu não li, mas cheguei à mesma conclusão, mesmo sendo a porra de um Zé ninguém! Uma pilha de fotocópias, se acumulando sem fim, cada vez mais pesada, até vergar a mesa em que está apoiada, e fazer ela partir ao meio, afundando sob o peso!

— Quando eu precisar da sua avaliação técnica, jogador de Tetris, eu peço. — retrucou Alice, de modo ferino, e, voltando-se para o sujeito ao seu lado, ordenou: — Retome sua análise, Doutor Danilo.

— É uma metáfora rude, mas vinda de um leigo, bastante aproximada, Senhora Moretti. — Disse o homem de jaleco, que agora Milton sabia se chamar Danilo, e que continuou: — Mas, enfim, o Gustaf, acredito, estava certo. Vamos colapsar em breve. O horizonte de eventos do novo buraco negro coincidirá com a frente de onda do nosso primeiro disparo sincronizado.

— Quanto tempo?

— Impossível calcular com exatidão. Mas não deve demorar. Não sabemos como as ondas do efeito se propagam. Se for quadridimensionalmente, o acúmulo de massa será em progressão geométrica. — Ele pigarreou, e  depois concluiu: — Gustaf achava que eram quadridimensionais.

— Vai ser em poucos dias. — Intrometeu-se Steinberg. — E essa filha da mãe sabe muito bem que essas ondas são em quatro dimensões sim! Eu ouvi ela dizer isso, em inglês!

— Afinal, — quis saber Danilo — quem é este homem?

— Ele é a anomalia.

— A… — Danilo se aproximou de Milton, mirando e analisando o homem algemado como se este fosse um exemplar todo constituído de matéria exótica, alguma aberração cosmológica. — A anomalia que descrevi na minha parte das equações?

— Sim.

— Incrível. — O Doutor Danilo se afastou, como se agora Steinberg estivesse fazendo um sensor de radiação gama estourar, e continuou: — Eu jamais adivinharia que pudesse ser uma pessoa, e que ocorresse tão perto de uma das Armillarys. A distância, nos meus cálculos, foi inferida, mas eu jamais chegaria a algo menos que zero vírgula oito sete três ano-luz. Como tem certeza disso, que uma pessoa é a anomalia?

— Ele soube de tudo, teve certeza de que o tempo estava em curva toroidal, no exato momento da experiência. Alega ter, inclusive, visto reflexos da frente de onda.

— Ah, brincadeira! Como ele pode ver isso? Intuição? Impossível!

— A consciência provoca colapso?

Danilo olha para a mulher, e diz, com um sorriso:

— A senhora está brincando? Não está?

Ela deu de ombros, e disse:

— Vou falar com os gerentes. Não faça mais nada.

— A senhora lembra que para o acidente voltar a acontecer, e tudo continuar do jeito que a gerência quer, todas as máquinas têm que estar operacionais, todas as manhãs, não lembra? — Alertou Danilo.

— Eu sei! Mas não faça nada agora.

— E ele? — Danilo apontou para Milton.

— Meus seguranças estão aqui fora, ele está algemado, não vai dar trabalho. De qualquer forma, eu queria que você desse uma olhada em Milton, aqui, para depois sugerir como devem ser os procedimentos de análise dele.

— O que eu quis dizer foi, o que vão fazer com ele depois?

— O normal, — falou Alice, como se respondesse a um “bom dia”, e já saindo pela porta do laboratório, certamente em direção a elevadores — analisar, processar e descartar.

Milton estremeceu. Aquilo não era loucura sua, não era uma fantasia, ele estava prestes a morrer, e seu sangue gelava diante da perspectiva de não poder fazer nada contra isso.

No silêncio que se seguiu, Steinberg mordia os lábios e feria os pulsos tentando se soltar, em vão. Enquanto isso ouvia o zumbir dos equipamentos à sua volta, e o tamborilar dos dedos do Doutor Danilo no computador que havia pertencido ao seu amigo, Rubens. Em algum lugar um relógio tiquetaqueava os minutos, que talvez fossem os últimos de Milton. A qualquer hora viram levá-lo. Será que iam cortar ele? Furá-lo? Dissecá-lo? Alice parecia fria e cruel. Ou talvez só estivesse tentando pôr medo nele… Não, as possibilidades eram tão horríveis que ele não devia levar em consideração esta última hipótese. Devia imaginar o pior.

O tempo se arrastou, suarento e tenso, e a certa altura um dos seguranças de Alice entrou. Não era aquele que Lewroy havia derrubado. O sujeito examinou Steinberg, verificando a algema, depois foi até Danilo, e sussurrou algo. O Doutor fez que sim, em resposta, e esperou o segurança sair, para só então dizer:

— É, Milton. O Gustaf tinha razão.

— Então desliguem essa máquina pra sempre, e me tira daqui.

— Seria bom. Mas entenda, a gerência está acostumada e usar gente, desde muito, muito tempo. Eles querem viver indefinidamente no topo absoluto da nossa sociedade, são maquinadores terríveis, e estão no comando de muitos pontos-chave. Nossos políticos, por exemplo, são fantoches baratos nas mãos dos gerentes, usados para fazer e limpar sujeiras. — Ele se levantou e circundou Milton, desaparecendo atrás deste, mas continuando a falar: — São ágeis, têm que ser, no entanto, naturalmente, os caras demoram algum tempo para tomar decisões, como todo conselho diretor, e no nosso caso, um único dia, sem uma atitude, pode significar o fim.

Um puxão, e um estalo metálico no pulso de Steinberg. Danilo havia, com algum alicate de pressão bastante forte, existente naquele laboratório, cortado a corrente da algema que prendia Milton, e este deu um pulo, parando em pé e visivelmente na defensiva, olhando para todos os lados, buscando saídas, armas, qualquer coisa com que se defender! O homem de jaleco disse, elevando só um pouco a voz:

— Calma, Milton, se quer continuar vivo, fica calmo e me escuta. Se você sair por aquela porta, os seguranças vão usar todos os aparelhos de choque deles em você, até o seu cérebro fritar.

Milton parou de buscar uma saída, e olhou para Danilo, ferozmente.

— Estamos do mesmo lado, pelo menos agora, no momento final, meu caro jogador de Tetris. Hum, bom jogo, o Tetris. Exige percepção de padrões, lógica…

— Por quê me soltou?

— Eu vou ligar a Armillary, e ter certeza que os caras não consigam entrar aqui antes de ela fazer o que Rubens e Gustaf queriam que ela fizesse, mas alguém tem que estar ali dentro dela e reposicionar aquele cabo solto que eu desengatei emergencialmente e por acaso, quando percebi que a máquina estava sendo reprogramada.

— Por quê você não faz isso agora? Eu não preciso estar ali dentro quando essa coisa ligar! Ligue o cabo, depois ligue a máquina.

— Um alarme vai tocar nas outras Armillarys assim que esta aqui for energizada novamente, e aposto que eles derrubam uma das outras para não perderem sua virtual imortalidade. Estou contando já com um pouco de sorte que nenhum outro operador esteja perto dos cabos internos quando ligarmos tudo aqui. Escute, honestamente, você já está morto mesmo, eles vão descartar você numa cova rasa como indigente, em alguma favela, de algum país miserável. Mas você tem a opção de dar sentido à tua morte, e pode me ajudar aqui, a… Salvar o mundo!

Como Milton ficasse apenas olhando para ele, ainda com fúria contida, Danilo então tentou outro caminho de convencimento, perguntando:

— Você tem filhos? Que tal agir por eles?

— Nunca… Nunca tive filhos…

— Deve haver pessoas que você gosta.

Milton fechou os olhos por um instante, e pensou em várias pessoas, inclusive em Rheny.

— Algumas.

— Então. Não tem mais volta pra gente, Milton. Você diz que tem certeza do que está acontecendo. Eu também. Li e agora entendo os cálculos. Só tem um jeito de fazer o mundo não desaparecer engolido por um abismo negro, é cumprir o programa que o Rubens e o louco genial do Gustaf deixaram.

O Doutor Danilo caminhou tranquilamente, enquanto falava, até a porta do laboratório, virou uma tranca, fechando-a, e passou o grande alicate que havia usado para liberar Steinberg por uma apara dupla que havia ali, travando ainda mais a entrada do laboratório. Neste instante alguém do lado de fora testou se conseguia abrir aquela porta, e, não conseguindo, começou a bater cada vez mais forte nela. Danilo agora dizia:

— Eu vou preparar os sistemas de apoio. Acho que desta vez não vai explodir, foi algo haver com os circuitos cinemáticos, como foram alinhados antes. Bem, quando eu disser, conecte este cabo naquela entrada vermelha ali dentro, consegue ver? Venha, dê a volta na Armillary, por aqui, assim. Tem uma parte aberta aqui, viu?

Entregando a ponta do cabo de força à Steingberg, cujos olhos avermelhados lacrimejavam (enquanto a porta do laboratório era chutada violentamente pelos seguranças, que gritavam sem parar), Danilo continuou:

— Entre e puxe a porta, vou fechar isso, a esfera precisa estar lacrada para funcionar.

— O que a Armillary faz? — Quis saber Milton.

— Bem… No fim, é uma espécie de, digamos, máquina do tempo. Antes que pergunte, jogador, — Milton achou curioso, mas Danilo não usou a palavra “jogador” em tom depreciativo, pelo contrário, pareceu mais uma saudação respeitosa. O físico prosseguia, dizendo: — e explicando bem grosseiramente, a Armillary vai… Voltar no tempo, até o momento em que ela foi acionada pela primeira vez. Só que ela vai se posicionar logo depois da frente de onda que curva o espaço-tempo gerada pelo primeiro disparo. Então ela vai disparar novamente. A frente de onda do primeiro disparo, se Gustaf estiver certo, e geralmente ele está, deve ser anulada por este disparo de onda que vamos iniciar agora.

— Eles vão te matar também. — Murmurou Steinberg, para o físico, apontando com a cabeça a porta do laboratório, que parecia estar detendo uma turba furiosa do lado de fora.

— Não vão não, depois que Rubens sumiu, e que Gustaf morreu, eu sou o único que entende a matemática desse experimento, e que eles têm aqui no Brasil.

— Eles sempre podem trazer gente de fora. — Murmurou Steinberg, e, até um tanto timidamente, o jogador de Tetris, o Zé ninguém, o quase louco, o homem gentil e solitário chamado Milton Steinberg, entrou na Armillary, puxando atrás de si a parte da esfera que o fechou dentro da máquina.

— Ocorre, jogador, que o meu risco é um pouquinho menor que o seu. — Enquanto falava, o sujeito de jaleco branco começou a agir, acionando chaves, premindo botões, e digitando em teclados de computadores espalhados em semicírculo em frente à Armillary. O zumbido dos equipamentos elétricos e eletrônicos crescendo rapidamente. — E, Milton, eu tenho filhos. A gerência pode tentar algo contra eles, ou nada pode acontecer se as frentes de onda se anularem, e este projeto for considerado um fracasso… Na verdade não faço ideia do que vem depois. Só sei que se ficar como está, tudo morre.

E Danilo parou em frente ao banco de terminais que controlava a esfera, como se tivesse feito tudo que podia, e ficou olhando para Milton, lá dentro da máquina. O rosto do físico (cujos olhos pareciam, agora, muito cansados) sendo iluminado pelo fraco brilho dos monitores, já que as luzes do laboratório caiam drasticamente, enquanto toda a corrente elétrica estava sendo revertida para a Armillary. Lá dentro, Milton posicionou a ponta do cabo de força bem próxima ao respectivo conector na máquina. Era tudo coberto por grossa borracha. Eletrocutado, pelo menos, ele não morreria.

A porta do laboratório foi arrebentada para dentro, como se uma besta grande e furiosa a tivesse abalroado, no exato instante em que Danilo gritou para Steinberg:

— Agora!

Milton sorriu, com lágrimas nos olhos, triste pela vida que ele não teria, e feliz pelas que salvaria. Murmurou, quase inaudivelmente:

— Padrão, já vi essa cena antes.

Ligou o cabo, e sumiu, engolido por uma explosão.

Deus Ex Machina

A Armillary, Milton, e tudo o que estava muito próximo dela, claro, deixaram de existir, pelo menos na conformação bariônica em que estavam organizados. Ou seja, seus corpos foram desintegrados. No entanto, a informação que aqueles bárions codificavam, não.

Um dos objetivos da Armillary era, precisamente, encontrar o fio condutor do processamento de informações do Universo, e ela era dotada de recursos para tornar a si mesma, ao menos por instantes, parte desta incomensuravelmente grande massa de dados auto-processantes, que era o espaço-tempo e seu conteúdo, em um nível logo abaixo do quântico. Assim, mesmo que a máquina, e tudo que ela continha, agora fossem apenas dados que gerenciavam a si mesmos (como, a propósito, o Cosmos inteiro faz, em toda a sua gloriosa existência multifacetada), ainda assim a máquina nascida da humanidade existia, funcionava, e seguia sua programação. No entanto ela agora não era mais somente a Armillary, ela agora era, também, Milton Steinberg.

Confusa e apavorada, no entanto, a informação inteira do que havia sido, fisicamente, o homem chamado Milton Steinberg entendeu a Armillary. Ele entendeu o que ela era, o que fazia, e o que ela se tornou, e o que a máquina fez ele se tornar, e, pendendo sobre o abismo da Existência, estirado até pouco mais de quarenta bilhões de anos-luz, Milton gritou, sem controle, por espanto e por terror mesmo! E seu grito reverberou em microondas pelo Universo. Tentou agarrar algo, e neutrinos fugidios se espalharam, onde deveriam ser as mãos do homem, atravessando gás e planetas desgarrados na escuridão entre as estrelas, sem conseguir tocar nada!

A Eternidade reverberou em sua mente, e Milton se sentiu destroçado por ela, dado que ela era inconcebível, visto ela ser incompreensível, esmagadora e aterradora! No entanto havia algo em que se agarrar, havia a Armillary, e sua simples programação. E com esta programação, Steinberg possuía um momento na vastidão do tempo ao qual se apegar, feito uma bóia em que se agarrar em um mar vasto e colericamente tempestuoso. O momento ao qual ele se segurava, então, brilhou na treva estrondosa e reverberantemente silenciosa de sons, mas gritante de eletromagnetismos. Este momento era exatamente o instante em que a esfera viajante do tempo e espaço pulsou, tornado-se real, sendo projetada novamente, como tudo mais, das bordas do Universo para o mundo “real”. Mas logo depois a Armillary e Milton voltaram a mergulhar na Eternidade, feito lágrimas dissolvidas no dilúvio informacional que era a substância nevrálgica da Existência.

No entanto, quando esteve “real” de novo, a Armillary que carregava Milton, sem seu circuito cinemático compensando, e devido ao movimento da Terra em torno do Sol, do próprio Sol em torno do Centro da Galáxia, e desta em relação ao Universo, acabou ressurgindo em um ponto onde a Terra ainda não havia chegado, a bilhões de quilômetros de distância do lugar, na superfície terrestre, de onde a Armillary partiu. Sim, é verdade que a esfera saltou para um momento passado, mas ainda assim, neste instante alvo, nosso planeta ainda estava por chegar ali.

A frente de onda do primeiro disparo da Armillary, tão veloz quanto a luz, chegaria primeiro, mas nosso mundo azul ainda levaria cerca de um dia para surgir no horizonte infinito e passar por onde a Armillary estava agora.

Portanto, de fato, e exatamente como fora previsto por Danilo, à partir dos cálculos de Gustaf, a programação da máquina viajante do tempo a fez surgir em um ponto depois da frente de onda de seu disparo original, aquele disparo que deu ao espaço-tempo próximo da Terra a forma de um anel, ou pneu, fechado em si mesmo, repetindo-se eternamente. A frente de onda original, no entanto, não era detida por este anel, e continuava a se expandir, a cerca de trezentos mil quilômetros por segundo, curvando partes cada vez maiores do Universo. Logo o centro da esfera invisível, cuja superfície era delineada por esta frente de onda, viraria um buraco negro que continuaria se expandindo, à velocidade da luz, Universo afora.

No entanto, no caminho desta onda destruidora, havia uma máquina. Uma máquina e um homem que tentava urrar de dor enquanto seus pulmões queimavam, seus tecidos esboroavam, seus líquidos cristalizavam-se e evaporavam em direção ao vazio, e ele, mais sozinho do que qualquer humano jamais esteve, morria no vácuo e no gélido zero absoluto do espaço profundo, muito longe de seu planeta mãe.

A Armillary, flutuando no vazio interestelar, disparou novamente. O primeiro disparo, o que causou todo o problema, havia sido para frente no tempo, este, inversamente, foi para trás. Era preciso que fosse assim, e que o disparo fosse o mais forte possível, para que a frente de onda que ele causaria anulasse a primeira onda, destrutiva. A máquina estava, agora, desalinhada com as outras Armillarys e, portanto, este acionamento derradeiro foi inofensivo ao espaço-tempo, mas a fez saltar ferozmente em direção ao passado, consumindo até a última gota de energia que dispunha. Isto, de fato, gerou uma brutal ondulação inversa, que foi normalizando o espaço-tempo em torno do Sistema Solar, impediu a formação do buraco negro, e salvou a humanidade, que nem se deu conta disso.

Os bárions que constituíam a máquina e seu ocupante mais uma vez se foram vertidos em direção à informação primordial que continham, e novamente os deuses, que por ventura existam, puderam ouvir o grito desesperado de microondas de Steinberg, enquanto ele resvalava pelos éons, caindo, caindo, caindo no abismo do eterno, e além dele, até o princípio do princípio, até o átomo original, até o tempo antes do tempo, quando o Cosmos era apenas uma promessa, e onde tudo estava, para nós ao menos, estático, e em tão perfeito equilíbrio que nada (um nada cuja a simples ideia dele, a menor percepção profunda deste vazio, dilaceraria qualquer consciência, por mais rude e simplória que fosse) existia.

Se houvesse o tempo, então, ele inteiro se passaria para sempre, e ainda o que era nada continuaria sendo nada, sem fim, perfeito, cristalinamente equilibrado na ausência de absolutamente tudo. Nada.

No entanto houve uma comoção.

Houve a máquina.

Em um ponto infinitesimal, que foi tudo que ela conseguiu realizar de si mesma diante de tanto e tão brutal nada, a Armillary e seu ocupante morto surgiram, vindas do que um dia seria o futuro. Ainda assim eles só conseguiram dar alguma substância a si mesmos por conta de um vasto número de máquinas parecidas (vindas de outros povos inteligentes, também do futuro, de um sem número de outros mundos alienígenas e de mundos paralelos) estarem se materializando ali, ao mesmo tempo, no ponto focal do tempo, junto com a Armillary enviada pela humanidade.

Seria tolice imaginar que só os terrestres, em seu momento no tempo que ainda viria, criariam máquinas como aquela. De todos os pontos do futuro Universo elas chegavam, cada uma reforçada pela seguinte.

Mas, no fim, havia ali uma máquina e uma consciência inteligente, esmagadas mas ativas, em um ponto menor que a cabeça de um alfinete.

Foi como o riscar de um fósforo no centro de trilhões, e trilhões, e trilhões de toneladas de explosivo, no mínimo. O choque no perfeito nada com a imperfeita matéria da máquina e do homem sugou com força tão colossal a informação da fronteira até ali, que fez dois infinitos se lançarem um contra o outro, feito titãs, e colidirem seus ombros maiores que o espaço-tempo, destroçando com violência jamais repetida por toda a Eternidade aquilo que era o nada, e formando um tudo que, ainda inocente das novas regras, apenas foi, no sentido de se tornar, um volume imensamente maior que o que deveria ser a princípio, e continuou sua expansão daí, quando s novas regras fizeram sentido.

Mas este titânico ribombar não formou apenas o espaço-tempo e os embriões de matérias e energias. Se espaço-tempo está para o papel, e um desenho feito neste papel representa as  matérias/energias, então o Choque Primordial criou também a experiência estética de o desenho ser visto. E fez isso a partir do impacto do nada perfeito com a imperfeita informação de tudo que Milton Steinberg (junto com todos os outros viajantes que ali aportaram) foi, sonhou, sofreu, amou, odiou, conquistou e perdeu.

No primeiro de todos os instantes da Existência, então, surgiram o espaço-tempo, suas representações em matérias e energias, e a fímbria consciente da informação auto-gerida. A “constante consciente” do Cosmos.

Feito o que ocorre com qualquer neonato, havia no Universo recém-nascido um lugar, um algo, e também a promessa sólida de um alguém.

Mas após a quase infinitamente vasta Luz da Colisão Primordial, houve escuridão. Por centenas de milhões de anos houve treva, por tempo o suficiente para que, por exemplo, se ela já existisse então, toda a história humana surgisse, crescesse e para sempre fosse esquecida. Era como se uma pálida, mas aterradora sombra do nada perfeito que havia antes de tudo voltasse a pairar pelo Universo. Para a semente consciente que remanesceu do nascimento do Cosmos, era como ser trancada em uma caixa e enterrada no mais profundo inferno tenebroso, gelado e completamente silencioso e escuro.

Pelo tempo de uma existência humana essa consciência foi feliz, ao perceber que estava viva, mas já ao fim desse tempo quase desprezível da Existência, ela como que corria pela treva sem fim que era seu mundo, gritando e gritando, com uma solidão cada vez mais apavorante, e com uma percepção cada vez mais aguda de que havia sido enterrada viva!

No primeiro milhão de anos ela viveu em amarga tristeza, sendo ela própria os colapsos de funções de onda que alimentavam o surgimento do que seria um dia a matéria. Era pouco, mas era algo que ela fazia.

Na primeira dezena de milhão de anos, ela chorou, consumida pela percepção de que nunca havia algo além da ausência de tudo para ver, tocar ou sentir. Por eras incontáveis, então, ela encolheu, dissipada pelo Universo, mergulhada na paranóia e no desejo de jamais ter sido.

Após a primeira centena de milhão de anos, a “constante consciente” do Universo se tornou apenas uma espécie de engrenagem, funcionando no automático, completamente louca, nada havia sobrado de sofisticado nela, apenas o abismo de algo que foi e sentiu, e que o isolamento infinito havia feito ruir sob seu peso. Sua psiquê, um dia vasta, agora estava desintegrada. Não havia mais nada dela.

Ou havia? Mais de duas centenas de milhões de anos depois, quando a bruma morna e intermediaria que preenchia o espaço estava pronta, enfim, e começava a colapsar nas primeiras estrelas do Universo, e a escuridão, que havia parecido sem fim, cedia agora a algo novo e cheio de possibilidades, a fagulha microscópica que havia sobrado da consciência primeva, tão pequenina e ainda por cima dissolvida e em expansão por e com todo o resto do Cosmos, quase perdida para sempre, sentiu e viu a ignição de novas luzes, e de um novo conceito.

Esperança.

Partes de si estavam mudando, pois assim era a Existência, mutante, mesmo que levando eras, sempre renovando seus terrores, mas também suas maravilhas! Era possível sentir, e com isso, pensar sobre isso, sobre sentir… Esperança. E então a esperança era assim, incrível, fantástica, possível!

E assim tudo cresceu, por bilhões de anos, o Universo restaurou sua fagulha perceptiva, e foi tentando, testando, mudando, chorando com as derrotas, maravilhando-se com as vitórias, amadurecendo, concentrando percepções em nebulosas, depois tornando essas nuvens em sóis, e, durante um rompante criativo, transformando discos de elementos primordiais em planetas, tão diminutos, mas cada vez mais ricos em novos recursos que eram gerados pelo espocar de supernovas! O artista farejava um caminho estético por ali. Planetas, quem diria, minúsculos pedaços de algo, eram a esperança de se chegar, pelo caminho sutil, às grandes coisas. Era o Universo fazendo e sentindo a si mesmo como uma pintura, como arte, como poesia em ultravioleta e raios gama, como esculturas de plasma estelar e sinfonias de abismos negros.

Ideias não surgem do nada, elas são a constante convulsão e mistura de experiências e novos dados, até mesmo para o Cosmos. Então não foi senão depois de uma planície viva e vigorosa quase sem fim, de tempo e espaço, que o Cosmos percebeu um outro conceito novo.

Perspectiva.

O Cosmos possuía uma, mas assim como ele próprio se estendia em múltiplas versões de si mesmo pelo Multiverso afora, sua perspectiva única, mesmo que privilegiada, não era e nem deveria ser unitária.

A vida, então, naturalmente, explodiu entre as estrelas, como um dom que uma passa a outra ao menor dos toques. E um dia, praticamente no instante presente, dada a percepção de mais de uma dezena de bilhão de anos que possuí o nosso Universo, ele representou a si mesmo em seres capazes de ostentar versões de sua “constante consciente” e de olhar a imensidão, e de se maravilhar, de questionar e querer saber, de analisar e criticar, de viver para explorar, criar e compreender.

Por muitos e vastos lugares no seio do Cosmos, então, houve consciência. Imperfeita, cruel muita vezes, mas consciência. Cada uma deste sem fim de criaturas sensíveis sendo e contendo uma fagulha do todo, conectada eternamente ao Universo. Cada um de nós, seres vivos e sensíveis, inteligentes e perceptivos, sendo um fractal que contém na sua mais profunda natureza a “constante consciente” do Universo.

O Cosmos viveu então um sem fim de histórias, embarcando junto com as extensões de sua inteligência, que são os habitantes conscientes ou não dos Universos que o compõem, em dramas que permearam a Existência e deram a ela tanta substância quanto uma boa trama, com sentimentos e criatividade, dá corpo a um bom livro.

E livros têm revezes, dores e sofrimento, mas também possuem em si amor, luz, glória e superação. O Cosmos não era indiferente, ele era apenas tão parte de cada lágrima das criaturas que nele habitam, e de cada riso exultante delas quanto elas próprias o são. Ele não observava, ele Éra cada suspiro de morte e cada grito de paixão. O Cosmos, é preciso citar, eram todas as histórias que foram, que são, e que serão, em uma sinfonia fantástica, soberba, incomparável de Amor e Fúria!

Algumas dessas histórias que o Universo viveu puderam ser vistas na Terra, outras não, mas para efeito desta nossa história, que vivemos juntos até aqui, autor, leitores e Milton, precisamos focar na fagulha dessa “constante consciente” que era e que dava atenção à Terra, neste nosso insubstituível e pequenino pedacinho da vastidão cósmica.

Aqui, como em outros mundos, a Mãe de todas as consciências, criada no Choque Primordial, também estava presente, e viu o mundo azul, parte de si mesma, se erigir da poeira, ganhar mares, céus e vida, e depois fulgir com a estrela da consciência humana. Aqui, como em outros mundos vivos e sensíveis do Cosmos, este mesmo mundo e suas criaturas, e o Cosmos que havia nelas, aprendeu lentamente o que era ser, existir, sentir, viver, respirar, doer, chorar, morrer, amar, valorizar, cuidar, superar a si mesmo, e fazer algo com paixão por todos e por tudo mais de bom que existe, legar algo de produtivo e construtivo.

No Sistema Solar, como por todo lado, mesmo quando a humanidade começava a ter ciência do infinito, o Cosmos ainda não possuía uma interface completa com seus fragmentos inteligentes, no entanto a “constante consciente” do Universo lá estava, claro, e os ouvia, sentia, era com eles, numa comunhão, novamente é precisa usar de citação, que só a sílaba e o som conhecem.

E, um dia, que corresponde lá ao começo desta nossa história, foi aqui, na Terra, que a consciência primeva percebeu, de repente, a própria realidade vibrando, confusa, e viu a anomalia se criar, forçando o espaço-tempo a uma curiosa configuração, onde ele se dobrava sobre si mesmo sem parar, em um rodopiar eterno.

A “constante consciente” do Universo percebeu então que esta anomalia, e muitas outras que estavam por vir, ocorrendo em outros mundos além da Terra, é que formariam o ponto onde surgiu a matéria enviada ao nada perfeito para criar o tudo, e com isso o Cosmos. Mas isso criaria também o seu doloroso, quase infindável e insuportável sofrimento no início da Existência, durante os primeiros duzentos milhões de horrendos anos de trevas e solidão. Só de perceber  aquilo ela, a percepção consciente do Cosmos, horrorizou-se quase ao nível de enlouquecer novamente. Agora ela vivia em meio ao movimento, à Criação, e não conseguiria ser, novamente, enterrada viva em eras de pura treva e morte! Não, nunca mais! Nunca mais! Nunca!

Ela pensou em impedir aquilo! Se impedisse, ela própria não existiria, mas também não teria enlouquecido, não teria morrido horrendamente, pavorosamente enterrada viva! Por duzentos milhões de anos! Lembrava quase nada do que havia sido antes desse tempo, mas armazenava, em um dos dons herdados da humanidade de Steinberg, a dor que a havia dilacerado. Dor não se esquece, se abranda, mas não se esquece. E não, não poderia suportar saber que pôde evitar aqui e não o fez, era melhor ela explodir em novas os sóis de cada civilização que fez, faz ou fará uma máquina viajante no espaço-tempo! Matá-las, todas as raças, consumir a inteligência, tão duramente conquistada e ainda em seus primeiros e vacilantes passos, em chamas colossais! Manchar o firmamento com sangue, mas sufocar as trevas! Qualquer coisa, mesmo o assassínio universal, era melhor que duzentos milhões de anos de trevas sem fim!

Era melhor assim. Era bom que não houvesse nada dela para definhar na sufocante treva. E esta sua simples decisão fez o núcleo de estrelas envelhecer mais rapidamente, aproximando-as de uma morte selvagem e aniquiladora. Uma dessas estrelas era o Sol da Terra, no instante em que Milton Steinberg percebia, pela primeira vez, as ondas em seu café. Ninguém sobre a face do planeta azul sabia, mas cada um deles, estivessem em iates luxuosos ou palafitas, estivessem mortalmente doentes com o consumo, ou simplesmente felizes com a mais verdadeira amizade, todos estavam prestes a vaporizar, como se jamais tivessem existido, relegando ao esquecimento sem fim tudo o que achavam que possuía valor. Estavam já, visto o horror que o Cosmos sentia, todos mortos, enterrados e esquecidos para sempre.

Mas… Histórias.

A “constante consciente” do Cosmos não podia destruir histórias. Para ela isso era tão horrendo quanto seria horrendo para os bons entre nós destruir uma criança, ou uma obra de arte. Imagine-se prestes a queimar as obras de Mozart, ou de Chopin, Johann Baptist Strauss ou a Mona Lisa, imagine-se rasgando os textos que considera sagrados antes que outros, no mundo, pudessem apreciá-los. Pois era assim que o Cosmos se sentia, quando, enfim, os núcleos das estrelas de cem milhões de milhões de mundos voltaram ao normal. Não haveria novas, não haveria chamas.

O Cosmos havia, subitamente, em sua escala, amadurecido.

Não iria interferir. Na verdade, pelo contrário, a “constante consciente” do Universo ajudou. Sua dor era sua, e iria viver com ela, assim como sentia e vivia a dor e o amor de cada parte sua, de cada humano sobre a Terra, e de cada ser sobre um oceano vasto de outros mundos.

O Cosmos tornou-se mãe e pai de si mesmo, zelando, com sua consciência e lógica com o tamanho e a complexidade da Existência, por seu destino. Iria sofrer tudo que tivesse que sofrer, mas seria corajosa, e daria à luz a Criação!

Assim, houvesse o que houvesse, as coincidências guiavam, sincronicamente, Milton ao seu destino, o qual, no fundo de sua essência, ele próprio ansiava em cumprir. Então, enquanto era observado pela Eternidade, seus atos foram cercados pelos eventos aleatórios da vida.

Assim, foi só por acaso que Milton Steinberg nunca conseguiu se sentir fazendo parte de nada, tudo era insubstancial demais, como se sua alma ansiasse por algo mais universal, como se ele jamais se sentisse em casa estando limitado somente à Terra. Esse espírito era essencial para as mentes que formariam a consciência do Universo, mas surgiu nele por obra do acaso, sim.

Foi por acaso que Milton tinha as exatas condições biológicas e energéticas para captar e perceber a onda da máquina Armillary, que disparou em um subsolo, na Urca, Rio de Janeiro, e aprisionou o mundo.

Foi por acaso que o mesmo raio de luz e os mesmos eventos reforçaram em Milton a consciência do que estava acontecendo, de que o tempo havia se erguido, feito imensa montanha, e se curvado sobre si mesmo.

Foi por acaso que Rubens conseguiu encontrar Steinberg, preso pelos seguranças da via férrea, e ter forças para resistir a uma arma de choque, e pôr abaixo um sujeito mais forte do que o físico, e treinado em lutas.

Foi mera obra do acaso o encontro de Milton com seu velho e destruído professor, que aspirava se superar, evento que lhe serviu de oásis em meio a tanta loucura, e o fez ter mais esperança, por um momento que fosse.

Foi o acaso que fez Rheny encontrar com Steinberg para primeiro lhe dar a vontade de seguir em frente, e depois ajudá-lo de fato, pessoalmente, a seguir adiante com o destino que lhe aguardava, esbarrando com ele na portaria do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas na Urca. Sim, o rumo poderia ter sido outro, mas havia a anomalia, e, como foi dito, no fundo de si, Milton desejava fazer parte de algo maior que ele próprio.

Foi por acaso que o inconsciente Milton, perto do fim, entendeu que se a frente de onda da Armillary não fosse revertida, a Terra e talvez todo aquele Universo se tornariam um vasto buraco negro.

Mas estes, entre muitos outros acasos, tiveram o Cosmos conspirando por trás deles. De cada um deles. Corajosamente criando os eventos que o fariam, a ele próprio, sofrer o pior dos martírios e morrer por centenas de milhões de anos. Mas que dariam vida à toda a esperança, a toda a perspectiva, à consciência e às histórias que existem hoje, ruins, mas também as boas.

Assim, a Armillary, e todas as suas irmãs pelo Cosmos, partiram mais uma vez para antes do começo do tempo, e, novamente, no início de tudo, quando o nada encontrou algo, e a simetria foi quebrada, a nossa Luz se fez, radiante!

Epílogo, a Vida que Segue

O velho professor de Milton não pode agradecer. Passou no concurso para o Tribunal de Justiça, e foi ele próprio notícia de jornal. Era mais um caso de coragem e tenacidade, saindo da mais absoluta miséria para se tornar um “homem reintegrado ao mercado de trabalho”. O idoso sabia que o trabalho era só uma ferramenta para algo de superior importância, mas a imprensa só conseguia alcançar a primeira parte, e o antigo mestre dava de ombros, e dava entrevistas também, era bom incentivar as pessoas a aprender mais.

Claro que o velho homem falou de Milton Steinberg, o sujeito meio louco que acabou morto em uma explosão jamais esclarecida, em um prédio federal na Urca. Sem Milton e seu “pequeno grande gesto” ao lhe emprestar recursos para estudar, explicou ao repórter o novo funcionário da Justiça, ele talvez não tivesse conseguido. Não conseguiria jamais ver Steinberg como um criminoso.

As entrevistas pararam, mas uma jovem, também concursada do Tribunal de Justiça, veio ter com o professor, falar que também conheceu Milton, e que acreditava igualmente na inocência do sujeito. O nome da moça, claro, era Rheny, e ela e o velho professor se tornaram grandes amigos, amigos para uma vida toda, sendo ele padrinho de seu casamento com um homem extremamente inteligente e gentil, alguns anos depois.

O próprio professor viveu bastante, e tornou-se, quando ainda era ativo, importante no seu trabalho, um juiz um dia, que foi figura destacada da expulsão sem probabilidade de retorno (a partir de uma profunda e verdadeira reforma política, cultural e social) da velha oligarquia corrupta e tenebrosa que parasitou o governo brasileiro, disfarçando-se ora desta, ora daquela legenda, e atrasando o crescimento do país até o início do século XXI. Em verdade o professor voltou aos noticiários quando, em mais uma convulsão social, arriscou a carreira, e talvez a própria vida, junto com sua amiga, a advogada e representante do Ministério Público Rheny Alencar Roussel, surgindo de mãos dadas com ela em meio ao Povo Brasileiro, que enfrentava novamente saraivadas de balas de borracha, bombas de gás e brutais espancamentos, enquanto enchia mais uma vez as ruas, manifestando-se, exigindo justiça e respeito de seus governantes, que nada mais eram que seus servidores, jamais o contrário!

Um dia, o Brasil conseguiu. O mundo conseguiu.

E, enquanto viveu, o velho professor passava, às vezes, pelo bar na Carioca, no Rio de Janeiro, onde Milton havia explicado a ele que as coisas estavam emperradas e precisavam mudar, voltar a fluir.

Tirando um tempo de seu dia, sentando-se no bar, o mestre pedia uma xícara de café, e ficava ali, sorvendo sem pressa a saborosa bebida quente, e vendo as pessoas, em suas histórias, em seu ir e vir. Olhava em volta e percebia, a cada ano, um povo que superava um pouco mais seu início humilde e difícil, e que abraçava a ética. Uma gente que deixava de cultuar o consumo e o dogma fantasmagórico e cruel do status, e que começava a voltar-se mais e mais para o conhecimento, para a simplicidade e para a sabedoria, e, portanto, para a verdadeira paz.

Costumava ser nesta altura de seus pensamentos, então, que o idoso mestre erguia discretamente a sua xícara de café, sorria, e murmurava, com sua voz forte, cheia de dignidade e sabedoria, mas por isso mesmo tão gentil:

— Obrigado, Milton.

FIM

  Compre Impresso: Sob o Olhar da Eternidade

Mas, antes, comente aqui embaixo, participe! A partir de suas opiniões, eu posso construir mais e melhores histórias para você.

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10 years ago

Sob o Olhar da Eternidade (Parte 3)

Muito bom te reencontrar aqui, me presenteando com sua leitura! Milton agora enfrenta as consequêncis de sua descoberta, ou de sua loucura!

Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Nada, Além de uma Cobaia

Como era de se esperar, foi tudo muito rápido. Não havia sido um segurança que derrubara Rubens, mas um outro homem, sujeito com cara de gringo e de terno alinhado, talvez fosse um segurança sim, mais acima na hierarquia dos seguranças por ali, mas fosse o que fosse, Milton queria que isso se danasse. Steinberg só sabia que o cara vinha com a arma de choque em punho, para o lado dele, passando por cima de Castilho, estatelado no chão. Milton recuava, aterrorizado.

Um celular tocou baixinho, em algum lugar por ali, uma musiquinha conhecida.

Ambos, Steinberg e o sujeito de terno, pararam e ergueram as mãos, as que não estavam ocupadas, em direção ao próprio corpo, instintivamente buscando sacar e atender seus smartphones.

Olhavam um na direção do outro. Na verdade o cara de terno, muito sério, nunca tirou os olhos de Milton, desde que entrou na enfermaria, e este último estava era olhando a perna de Rubens, deitado abaixo do homem de terno, que se encolheu até o joelho quase tocar o queixo do físico. O elegante recém chegado percebeu que Steinberg olhava mais para baixo, e fez questão de que o sujeito encurralado visse a arma sob seu paletó, tocando-a, exibindo-a, enquanto parecia que estava prestes a dizer algo. Foi neste instante que o Doutor Lewroy deu o coice mais forte de sua vida nos testículos de alguém. Os olhos do cara de terno quase pularam fora das órbitas. A arma, por alguma razão, saltou de sob o paletó, e o homem dentro do paletó despencou com estardalhaço sobre a maca onde Milton havia estado desacordado. Steinberg, por puro reflexo, tinha se esquivado com um pequeno salto lateral. Então a maca, o terno, e seu dono, ficaram todos embaralhados e imóveis no chão.

Milton pegou a arma que jazia caída, ali perto, enfiou a pistola em sua pasta à tiracolo junto com o fotômetro, e foi saindo daquela enfermaria, agarrando Rubens, levantando-o, e o arrastando consigo. Não trocaram palavra, nem encontraram resistência dos seguranças, apenas bufaram e praguejaram juntos, enquanto saíam da parte da estação férrea destinada aos  funcionários, e, lição aprendida por Milton, que refreou o amigo quando este tentou disparar, caminharam rapidamente até desaparecerem na estação de metrô de superfície anexa. Foi só então que ambos sussurraram entre os dentes, começando por Steinberg:

— Eu já te disse, — havia impaciência em sua voz — um experimento internacional. Complicado de explicar assim. Deu errado, houve uma explosão, Iceberg, todo mundo já estava apagando as luzes quando você apareceu, e bateu de frente justo com a Alice!

— Quem é essa mulher? É gringa?

Rubens ainda estava tonto, e o metrô, também invariavelmente lotado, não ajudava. Enquanto tentava achar um lugar onde se agarrar, enquanto eram arrastados pelos transeuntes para dentro de uma composição que estava prestes a sair em direção ao Centro, o físico disse, seco:

— É. Gringa.

— Tem um português impecável.

Lewroy fez que sim. Estavam ele e Steinberg prensados contra a porta oposta àquela pela qual foram empurrados pela turba que invadiu aquele carro de metrô. Steinberg, subitamente, começou a sentir medo de que as pessoas comprimidas  contra ele acabassem disparando a pistola dentro de sua pasta, e tentou levantar a bolsa, sem sucesso, acima da cabeça, enquanto dizia, ainda em um murmúrio feroz:

— Então! Esse experimento tem haver com o tempo? Fala, Cabeça, que merda, talvez nós estivéssemos mortos agora se aquele filho da puta entrasse atirando.

— Não, cara, eu não acho que ele queria te matar. Provavelmente ele queria você vivo, como…

— Como o quê? Cobaia?

O silêncio de Rubens deixou Steinberg sentindo um profundo terror. Ele baixou os olhos, exausto, a cabeça doendo terrivelmente, e disse mais para si mesmo:

— Eu senti. Senti mesmo que algo diferente tinha acontecido comigo, quando ví as ondulações na xícara, as pessoas sentiram, só eu vi.

Com a cabeça como que girando, Milton comprimiu os olhos, forte, tentando respirar fundo, apesar de comprimido entre as pessoas do jeito que estava.

Com um tranco, o metrô parou na estação seguinte, uma lufada de ar entrou, fresca, e Steinberg sentiu um pequeno alívio na pressão à sua volta. Ergueu os olhos.

Estava só.

Viu as porta se fecharem e ficou procurando seu amigo de infância lá fora, imaginando se ele, que já havia dito querer ir embora da cidade, teria saltado na estação, mas não viu ninguém. O metrô disparava rápido, e as últimas pessoas vistas pelo vidro da porta se tornavam quase borrões indistintos, então talvez Rubens tivesse passado bem defronte seus olhos, mas Milton não o reconheceu, talvez… Mas, talvez… Apenas talvez… Ele lembrou da bela Alice, e da Navalha de Occam.

Talvez estivesse ficando louco mesmo.

As estações chegavam e partiam, e Steinberg se sentia cada vez mais exausto, desesperançado. Não sabia onde estava, sabia apenas que estava sob os alicerces da cidade, do Centro, todos os milhares de escritórios, onde se fazia de conta que se era civilizado, um teatro de sombras esperando a escuridão final, tudo isso estava sobre ele agora, que era um minúsculo Atlas, e as estações continuavam a vir e ir, desimportantes.

É, pensava, talvez seja isso, talvez cada um de nós estivesse louco. Isso explicaria muita coisa. Seus dentes apareceram sob os lábios, ele sorriu amargamente.

Foi quando lhe surgiu aquela sensação de estar sendo observado. Levantou a cabeça e seus olhos encontraram os olhos de um homem que ele conhecia de algum lugar… Subitamente se lembrou, o sujeito que iria encontrar com a irmã perdida há vinte anos, e que não sabia chegar ao Centro do Rio, e lhe perguntou se ia na direção certa, um dia, no trem. O camarada estava um pouco distante na massa de gente, e fez um sinal de “o.k.” com o polegar, havia reconhecido Milton, que por sua vez abriu a boca para perguntar pela irmã do sujeito, mas de repente se sentiu oprimido novamente, e se calou. Foram essas coincidências que o deixaram insano, que o fizeram mergulhar nesta angustiante sensação de que o mundo em torno dele havia enlouquecido. O homem que estava olhando para Milton pôs uma das mãos ao lado da boca, em concha, e gritou:

— Obrigado, cara!

Com um sorriso desanimado, Steinberg gritou de volta, em meio ao burburinho da turba enlatada ali:

— Sua irmã? Encontrou?

— Irmã? Que irmã? Sou eu! Do trem, da prova! Olha, consegui fazer aquela prova, tá ligado? Valeu!

Antes do agradecimento final Milton já havia baixado a cabeça de novo, e comprimido os olhos, que lacrimejavam. Um torvelinho de horror girava em seu peito, ele estava com algum problema no cérebro. Só podia. Tudo o que lhe aconteceu foi fantasia. Precisava de um médico, um psiquiatra. Foi quando algo cutucou sua costela, pois uma senhora obesa, que tentava chegar perto da porta de saída, o espremeu mais do que já estava, comprimindo sua pasta tiracolo contra seu flanco.

A arma!

Com um solavanco, o metrô parou em mais um estação, enquanto o campeão de Tetris tentava alcançar a prova de que ele Não havia alucinado.

A arma era real! Quase acotovelando os outros, Miltou conseguiu abrir, com dificuldade a bolsa, mas acabou escancarando-a, tão ansioso estava por algo em que se agarrar para provar a si mesmo que não estava alucinando. Um sujeito alto e careca que estava ombro a ombro com Steinberg viu a pistola pular dentro da pasta, e o dono da pasta agarrar a coronha dela, então o homem calvo começou e empurrar outras pessoas, tentando se afastar, enquanto exclamava:

— Meu Deus, uma arma!

— Senhor!

As vozes se multiplicavam em torno de Milton. Pessoas assustadas se acotovelando e levantando a voz.

— Porra, tem um cara armado!

— Sai!

— Senhor! — Steinberg finalmente reparou que este “senhor” era com ele. — Senhor, solte a arma!

Era uma mulher que tentava se achegar à Milton. Ela vinha empurrando as pessoas o mais cuidadosamente que podia, mas vinha inexoravelmente em direção dele, com ares de poucos amigos e com um uniforme preto de segurança do metrô. Steinberg estava começando a detestar seguranças!

Ele ergueu a arma. Não estava louco! Olhando em volta nervosamente, percebeu que por alguma razão que não poderia ser coincidência, aquele vagão continha mais três seguranças de farda escura que vinham também em sua direção,  cercando-o.

Um dos outros seguranças, homem, muito alto e largo como lutadores costumam ser, mantinha uma das mãos baixa, provavelmente já empunhando um cacetete ou coisa pior, enquanto já esticava  a outra mão, em garra, na direção de Steinberg, e dizia com voz firme:

— Calma. Calma, amigo.

Milton sabia que iria parar em outra sala sem janelas, e desta vez é pouco provável que escapasse do gringo de terno. Apontou a arma, hora para um, hora para outro dos seguranças! A mulher, a primeira a vir em sua direção, agitou uma das mãos para os colegas pararem, e começou  a falar para todos os passageiros:

— Todo mundo deita no chão. — Steinberg não pôde crer no que a segurança disse, e algumas pessoas, no meio daquele mar de gente prens, mas risos. ada, chegaram mesmo a rir. Risos nervosos, mas risos.

Apontando a arma para ela, Milton berrou, trêmulo:

— Você também! Todos vocês! Deitem no chão!

— Camarada… — Começou o segurança fortão, ao que Steinberg foi dizendo, com os olhos dardejando entre os seguranças e com a voz esganiçada de tão nervoso que ele estava:

— Escuta, porra. Eu só quero sair daqui. Essa arma não é minha. Deita na porra do chão, e eu não atiro em ninguém! E vocês primeiro! Os seguranças primeiro!

Todos os seguranças se abaixaram da melhor forma que conseguiram. O metrô havia parado em mais uma estação, e as portas se abriram.

— Agora os outros, os passageiros, por cima deles! Todo mundo se amontoando em cima dos seguranças! Vai! Vai! — Gritou Milton, sendo obedecido por todos, enquanto ele mesmo saltava do vagão e desatava a correr o mais rápido que conseguia.

Passou feito um meteoro pelas catracas, mantendo a pistola em punho mas oculta o melhor possível por sua pasta tiracolo. Subiu em disparada o passadiço curvo e ascendente da Estação Carioca, correu feito louco pela plataforma principal, em direção à saída do edifício Avenida Central, e escalou as escadas rolantes saltando de dois em dois degraus! Assim que saiu da estação do metrô, ele dobrou para esquerda, duas vezes, e, um pouco mais adiante, sem fôlego, parou e respirou fundo até se acalmar um pouco. Por alguma razão não havia ninguém perseguindo ele, devem ter visto que saiu da estação e deixaram o problema para que a polícia na rua se virasse com ele.

Sem perceber, ele havia dado uns poucos passos atrás, enquanto aspirava o ar ensolarado, vigiando se alguém o seguia, e, com uma olhadela para trás de si, para ver se não ia tropeçar em nada, se apoiou em um balcão de algum bar. Voltou a olhar em direção à saída do metrô, pronto para fugir se algum uniforme preto ou algum policial viesse em sua direção.

Foi então que um leve toque no braço o fez olhar para trás, agora mais ostensivamente, e ver a versão muito jovem e loira de dona Glória lhe passando uma fumegante xícara de café.

A Xícara, Novamente

Milton Steinberg se arrepiou todo, como se fosse a peça de porcelana uma víbora! Então ele olhou em torno, só percebendo naquele instante que estava na cafeteria, a mesma de ontem, de antes de ontem, de todos os dias! Olhou de novo para a xícara, pois logo a superfície do café vibraria, captando, com suas ondulações, a explosão distante, e tudo recomeçaria, de novo e de novo.

— O de sempre, senhor Milton. — Falou a atendente, sílaba a sílaba, do mesmo jeito, com o mesmo sorriso gentil.

Steinberg pegou a xícara como se ela fosse venenosa, e lembrou tarde demais que tinha uma arma nas mãos. Quando tentou aparar a xícara com a segunda mão, pois em sua mão trêmula o café ameaçava cair, Milton expôs a arma. A jovem atendente, consequentemente, viu a pistola na outra mão de Steinberg e foi recuando e repetindo sem parar:

— Ai meu Deus, ai meu Deus...

O homem armado arregalou os olhos, fitou a arma em sua mão como se a visse pela primeira vez, embora soubesse claramente como ela tinha ido parar lá, ele… Acreditava… Que havia tomado ela de um cara mal… Comprimiu e abriu os olhos, e com um movimento brusco da cabeça, relanceou em volta novamente, esticando a cara para fora da cafeteria, e foi então que ele viu homens uniformizados! Policiais, carcereiros! Encostados em uma viatura, não muito distantes dali, conversando soturnamente. Milton olhou de volta para a atendente, que, acuada, continuava rogando a Deus e a ele por misericórdia. Com um olhar de súplica, Milton apontou a pistola para a jovem, não para intimidá-la, mas, sem saber o que falar, sentindo-se imensamente envergonhado por assustar a moça. Mas ela entendeu como uma ameaça, se encolheu, se calando, chorando baixinho. Talvez, pensava Steinberg, suando e tremendo, seu cérebro chegando no limite diante de tudo aquilo, mesmo que ele atirasse nela, ela, no dia seguinte, voltaria, ou talvez a versão idosa dela. Milton sentia um nó na garganta, o peito oprimido, talvez tivesse que atirar, atirar em alguém… O sistema estava ali, em torno dele, novamente, novamente e novamente, cada parte agora eternamente corrupta do maldito sistema impelindo seu dedo no gatilho. Quantos Miltons o sistema matava por dia? Talvez fosse isso, tudo aquilo era para eliminá-lo, ele que parecia ser o único a saber que aquelas vinte e quatro horas eram sempre os mesmas. Talvez, de fato, a arma estivesse em suas mãos para Steinberg atirar em si mesmo, antes que fosse arrastado e trancado por toda a eternidade em uma cela (onde quer que ficasse, naquele dia eterno, jazeria para sempre).

— Nãããooo… — Murmurou ele, com o rosto contorcido de agonia. Suas lágrimas escorriam.

Na xícara, o café ondulou, rápida mas delicadamente, no mesmo instante em que Milton percebeu que seus carcereiros vinham correndo em sua direção, e em que ele foi levantando novamente a arma. Outros funcionários da cafeteria, vendo agora a pistola se erguendo, prestes a tirar a vida de alguém, começaram a fugir e gritar. A jovem do outro lado do balcão exibia as mãos espalmadas à frente de si mesma, que ela agitava no ar, como se estivesse negando algo, ou dando adeus à Milton. A boca da jovem, silenciosamente, repetia sem parar “não, não, não”…

E Milton Steinberg atirou. Duas vezes.

Mas não antes de se abaixar. A princípio ficou sem perceber claramente como a ideia lhe veio à cabeça, apenas pôs em prática, e no meio da ação entendeu o que estava fazendo, muito embora, em retrospecto, percebesse que foi, sim, premeditado. Estava lá, a ideia tão junta do agir, que ambas eram quase indistinguíveis.

Milton se abaixou rapidamente, antes que a pequena multidão de clientes e funcionários dispersasse. Os guardas, ele apostava, não tinham gravado sua fisionomia. Então, agachado, atirou para cima, torcendo para não ferir ninguém, e, ato contínuo, arremessou a arma numa reentrância por baixo do balcão. A princípio ele se estatelou no chão, como os outros faziam, por causa do terrível medo de balas perdidas que os moradores da dita cidade maravilhosa tinham, mas quando as pessoas perceberam que não haveria um terceiro tiro, e que começaram a se levantar e fugir, Milton fez o mesmo, mantendo as mãos se agitando no ar, vazias, como se ele fosse mais um transeunte em pânico.

Em um minuto estava andando a passos largos em direção à Cinelândia, e enquanto passava em frente ao que o povo da cidade chamava de uma decepção constante, e que as pessoas lá dentro chamavam de Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ele passou por uma moça bonita que, por um segundo, ele achou ser sua vizinha Rheny. Mas não, não era ela, era uma moça muito parecida, mas ruiva, gringa, até um tanto sardenta, que estendeu um smartphone na direção dele, mostrou-lhe uma credencial que ele não conseguiu ler, e fez um gesto amplo, sorrindo, e dizendo algo sobre a copa do mundo, perguntando coisas, como se fosse uma entrevista.

Milton ficou, por um instante, fascinado com a semelhança entre esta mulher estrangeira e a sua Rheny. Que… Coincidência desconcertante…

Com a gringa insistindo, e sem saber como responder melhor, ele fez que não, agitando cabeça e mãos. Deveria estar havendo uma copa do mundo no Brasil, sim, mas ele não tinha tempo para mais pão e circo. A repórter ruiva perseverou na tentativa de que ele a respondesse, e ele, então, apontou para o próprio rosto, sinalizando lágrimas imaginárias, com as pontas dos dedos riscando o rosto a partir de seus olhos para baixo, depois apontou para o Palácio Pedro Ernesto, a Câmara Municipal, e disse:

— Corrupção. Roubalheira. Traição à pátria. Todo o governo, política desmoralizada e falida! Sem alegria. — E, lembrando seu velho professor que havia caído em desgraça, arriscou: — We… We will only be happy in a country of graduates, not in a country of…

Milton não conseguiu atinar de como se dizia “chuteiras” em inglês, então tentou por um momento imitar com os dedos alguém chutando alguma coisa, e, sentindo-se ridículo e amargurado, desvencilhou-se da moça, que ainda tagarelava.

Steinberg se livrou dela e continuou a caminhar ligeiro, para longe dali, apressando o passo ainda mais quando se deu conta de quantos policiais rondavam naquela praça. A vigilância ferrenha devia ser por conta da própria Câmara Municipal, para evitar que a indignação do povo que ela deveria respeitar lhe rendesse umas pedradas. Seus ocupantes, que a profanavam por dentro diuturnamente com sua politicagem corrupta e amadora, acusavam sarcasticamente de vandalismo qualquer revolta popular que a atingisse por fora. Era agoniante para Milton pensar que aqueles inchados vermes lamurientos e devoradores das riquezas da cidade teriam um reinado eterno, e de agora para sempre nada mais poderia ser feito para arrancá-los de lá.

Mais à frente Steinberg se enfiou no primeiro ônibus que conseguiu achar. E enquanto a condução rodava, ele pensava na ruína em que sua vida havia se transformado. Seria preso. Preso eternamente. Isso se não virasse mesmo uma cobaia… Mordeu o lábio inferior até quase se ferir. Nada daquilo tinha que ser real, talvez tudo fosse alucinação. Não tinha certeza mais de nada, só de que o dia se repetia, essa era sua única, vasta, absoluta e sombria certeza.

Sentado em um dos bancos do ônibus, a cabeça apoiada no vidro da janela, seu olhar, úmido, cuja expressão foi mudando, de triste e desesperançado para raivoso e amargurado, subitamente ganhou foco.

Não, não, pensou ele, enxugando as lágrimas, essa não era sua única certeza. Milton tinha também a certeza de saber onde tudo aquilo começou, e onde os infindáveis dias repetidos… Ou sua loucura… Poderiam ter um fim.

Saltou do ônibus e tomou outro, começando a ir em direção à Urca.

Continua na próxima semana, não perca...

Leia a Parte 4, FINAL de "Sob o Olhar da Eternidade"

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10 years ago

Sob o Olhar da Eternidade (Parte 2)

Meus profundos agradecimentos àqueles que me deram a honra de me ler até aqui! Vamos em frente, neste texto um tanto crítico, outro tanto irônico, onde Milton, uma pessoa tão comum e tão desalentada pela realidade crua quanto muitos de nós, mergulha em um mundo de paranóia, ciência, e conspirações, tentando encontrar a si mesmo dentro de um prisão que ele crê eterna!

Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Qual a Probabilidade?

Milton comprou, à prestação, um fotômetro. O mais preciso que o Google conseguiu lhe indicar. Ajustou o aparelho, e começou, dia após dia… Ou melhor, nas repetições daquele dia, ele começou a tentar pegar o raio de luz que lhe cegava. Mas o Universo, como da hábito, não pretendia entregar seus segredos sem lutar, e as mesmas coincidências que o levavam a ser cegado pelo reflexo na cúpula de vidro agora o tiravam, diligentemente, do alvo.

— Você mora perto da minha casa, não? — Disse-lhe sua vizinha, subindo ao seu lado a escada rolante para a plataforma do trem, em Madureira, quando ele ia para o trabalho.

Era inacreditável, mas o fato de ele saber que o dia se repetia deveria estar causando flutuações mais intensas na realidade, pois lá estava, bem ao lado dele, a mulher que tanto o atraia, e que jamais havia percebido a existência de Milton, e agora não só estava a menos de um metro dele, mas também tomou a iniciativa de puxar assunto. Antes mesmo que ele pudesse responder, ela riu, sem jeito, e foi dizendo:

— Desculpe, não me entenda mal. Quero dizer… — Riu de novo, ainda mais sem graça. — Mas somos vizinhos, não somos?

— Você é muito lind… — Engolindo de volta o que tentou dizer em um ato falho, Milton engasgou ligeira mas visivelmente, tentando também consertar o dito: — Minha vizinha, sim, você é minha vizinha.

— Eu sabia! — Ela sorria. — Meu ônibus enguiçou, tive que pegar o trem. Não costumo fazer isso, mas como eu sei que você é um cara gentil, eu, meio louca, sei lá, perguntei antes de perceber que isso iria ficar estranho.

Milton comprou, à prestação, um fotômetro. O mais preciso que o Google conseguiu lhe indicar. Ajustou o aparelho, e começou, dia após dia… Ou melhor, nas repetições daquele dia, ele começou a tentar pegar o raio de luz que lhe cegava. Mas o Universo, como da hábito, não pretendia entregar seus segredos sem lutar, e as mesmas coincidências que o levavam a ser cegado pelo reflexo na cúpula de vidro agora o tiravam, diligentemente, do alvo.

— Você mora perto da minha casa, não? — Disse-lhe sua vizinha, subindo ao seu lado a escada rolante para a plataforma do trem, em Madureira, quando ele ia para o trabalho.

Era inacreditável, mas o fato de ele saber que o dia se repetia deveria estar causando flutuações mais intensas na realidade, pois lá estava, bem ao lado dele, a mulher que tanto o atraia, e que jamais havia percebido a existência de Milton, e agora não só estava a menos de um metro dele, mas também tomou a iniciativa de puxar assunto. Antes mesmo que ele pudesse responder, ela riu, sem jeito, e foi dizendo:

— Desculpe, não me entenda mal. Quero dizer… — Riu de novo, ainda mais sem graça. — Mas somos vizinhos, não somos?

— Você é muito lind… — Engolindo de volta o que tentou dizer em um ato falho, Milton engasgou ligeira mas visivelmente, tentando também consertar o dito: — Minha vizinha, sim, você é minha vizinha.

— Eu sabia! — Ela sorria. — Meu ônibus enguiçou, tive que pegar o trem. Não costumo fazer isso, mas como eu sei que você é um cara gentil, eu, meio louca, sei lá, perguntei antes de perceber que isso iria ficar estranho.

— Não ficou. Não, não ficou. Somos vizinhos, devemos nos conhecer. — A pasta tiracolo dele escorregou de seu ombro, e Milton a ajeitou. — Tudo anda tão louco, que é bom saber que pessoas conhecidas estão por perto… Ei, desculpe perguntar, mas como sabe que eu sou gentil?

— As pessoas falam. — Ela estava estonteante, arrumada para o trabalho, elegantemente e sutilmente sensual. Devia ser advogada, ou algo assim, ele pensava.

— Pessoas?

E dali em diante ficava fácil deduzir o por que fez ele não ter conseguido medir o reflexo luminoso, de novo. Na verdade ele nem lembrou do flash até chegar ao Centro do Rio. Sua vizinha, que se chamava Rheny Alencar Roussel, explicou a ele sobre como as senhoras da vizinhança, que gostavam dela pois todos os sábados Rheny jogava cartas com elas, haviam colocado Milton na lista de boas e más pessoas das redondezas, enquanto fofocavam inofensivamente entre si. Ele era uma das pessoas boas. Uma certa senhora do grupo, que Steinberg sempre achou que não gostava muito dele, o viu respondendo aos acenos de crianças dentro um ônibus que agitavam as mãozinhas nas janelas (quando acenam para você, é educado, ele achava, acenar de volta, especialmente quando se percebe a alegria inocente dos pequenos) em uma rua próxima, deixando-as risonhas e felizes.

Milton jamais imaginaria que ele pudesse estar em uma lista dessas, no lado das boas pessoas, e se sentiu feliz com aquilo. Tão feliz que, ao se despedir de Roussel, sem, no entanto, reunir coragem para pedir a ela um telefone ou algo assim, subitamente se deu conta de que havia esquecido de medir o reflexo luminoso!

Na tentativa seguinte, exatamente quando Milton levantava o fotômetro, um sujeito lhe disse que estava perdido, que precisava ir ao Centro mas que não sabia se estava indo na direção certa, pois era de fora do Rio, e estava ali para buscar uma irmã, que ele não via há quase vinte anos, e etc e tal, e pronto, lá se foi sua chance naquela manhã de medir o foco luminoso.

No dia posterior Steinberg estava tentando, dentro do vagão em movimento, acionar o aparelho de medição sem tirá-lo da bolsa, pois nos dias anteriores achou que os seguranças da linha férrea o estavam olhando torto, talvez estranhando que ele andasse apontando aquele aparelho para lá e para cá, enquanto o calibrava. Milton, portanto, passou a tirar o fotômetro só quando estava chegando perto do ponto onde a luz o atingia. Mas enquanto tentava acionar o aparelho que, por alguma razão misteriosa não queria ligar, ele foi abordado pelo pedinte ranzinza, que o cutucou com uma caneca, e disse:

— Qualquer dez centavos serve.

— Hein? Ah, sim. Eu não tenho.

— Você nunca tem.

Milton ficou olhando para o pedinte, um senhor de certa idade, sem saber o que dizer além de um xingamento, que, em verdade, ele preferia não dizer. Steinberg não era muito velho, mas era do tempo em que não se xingava tão levianamente quanto hoje em dia. Então, subitamente, o homem preso em um único dia se viu perguntando ao mais velho:

— Para quê o senhor quer dinheiro?

— Estudar.

— C-como? O que você disse?

— Isso que você ouviu, rapaz. Na verdade eu sempre explico, mas você é um daqueles muitos que não escutam, que não querem escutar, ou estendem a mão e deixam cair seus trocados aqui na caneca, — a peça de plástico se agitou e tilintou na mão dele — ou fingem que não me viram. Uns poucos me dizem um mais cortês não. Você sempre me diz não, mas pelo menos fala comigo.

— Me… Desculpe.

O velho deu de ombros e prosseguiu, animado em conversar:

— Lembra do cara que morava na rua e que estudou e passou para o concurso do Banco do Brasil?

— Ouvi falar…

— Pois é. Eu já fui professor, agora moro na rua, junto com outras pessoas em um buraco na estação de Madureira. Mas acho que posso sair dessa, seguindo o exemplo daquele homem, estudando.

— Professor? — Milton ficou com a impressão que conhecia o velho pedinte, e essa impressão deve ter transparecido em seu rosto, pois o outro foi dizendo:

— Sim, eu fui seu professor no ginásio. Eu nunca esqueço um rosto, eu acho que você era o… Rosemberg?

— Steinberg. Português? O senhor ensinava português?

— Estudos sociais.

— Como? Quero dizer, como isso aconteceu, professor?

— A profissão já não tem muito prestígio no país no futuro, sabe como é. O país das desgastadas chuteiras tem tudo para ser o país dos diplomas, mas não é. — Seu sorriso não desapareceu, mas seus olhos expressavam mágoa, quando completou: — E, cá entre nós, convenhamos, droga só pode chegar tão fácil na mão da gente com a conivência, ou coisa pior, dos governantes, certo?

Milton, agora, foi quem deu de ombros. Aquilo era uma coisa que todo mundo sabia, política e marginalidade no Brasil eram quase sempre a mesma coisa. Steinberg fez uma cara triste. Achava que lembrava, vagamente, do professor, e ele era um cara que ensinava legal, sempre risonho, parecia gostar muito de lecionar.

Steinberg se atrasou para o trabalho naquele dia. Ele e seu antigo mestre comeram juntos na mesma cafeteria que Milton sempre frequentava, e o professor viu a xícara de café vibrar e o líquido preto dentro dela se preencher de ondas concêntricas!

— O senhor viu isso? Viu só?

Ele tentou explicar ao idoso professor que aquilo acontecia diariamente, e não teve certeza se o cara entendeu que algo inusitado estava acontecendo. Depois disso Milton passou em uma livraria com seu antigo mestre, que sonhava em voltar a estudar, e quase estourou o que restava do limite do seu cartão de crédito, comprando apostilas e livros para o sujeito, cujo rosto se iluminou, ele tinha uma chance! Em uma LAN house, Steinberg fez um perfil no Facebook para o sem teto, anotou os dados em um dos livros que haviam comprado, e fez o cara prometer que, quando superasse aquela época difícil, após passar no concurso, iria fazer contato com ele. Milton sabia que isso não aconteceria, pois nunca mais haveria amanhã, mas, caramba, justamente por isso, dane-se! Deu algum dinheiro para o sujeito, e se despediu dele. O velho professor ficou tão feliz que Milton só lembrou do flash luminoso no dia seguinte.

Mais um dia e Steinberg estava, de novo, no vagão, e conseguiu, com algum esforço, chegar à exata posição onde, ele já estava cansado de saber, o raio de luz o atingia. Mas assim que chegou lá, tossiu. Um sujeito de terno e gravata, com aparência de executivo, parecia ter passado a noite anterior dentro de um grande tonel cheio de perfume! Se ao invés de cheiro o camarada estivesse exalando fogo, o trem inteiro teria explodido e estaria ardendo em chamas! Era quase insuportável, mas, desta vez, Milton estava decidido a não deixar nada, de jeito nenhum, impedir que ele fizesse a medição da luz. Fincou pé em sua posição e armou o fotômetro assim que o trem parou na estação logo antes de onde ele sabia que o raio luminoso costumava aparecer. Em cerca de dois minutos o flash espocaria da cúpula de vidro do templo religioso, mas não atingiria seus olhos, e sim o sensor do fotômetro.

Houve um certo tumulto, na estação em que o trem havia parado, um burburinho, algumas pessoas correndo, e Steinberg ouviu, em algum lugar, a palavra “assalto”, mas não houve uma explosão de gente em fuga, o que pareceu indicar que tudo havia passado. As portas da composição se fecharam, ele apertou o sensor luminoso na mão direita, enquanto a esquerda segurava firmemente a barra de metal acima dele, que servia para que as pessoas entulhadas ali dentro se mantivessem de pé, para caberem mais dos ditos dignos trabalhadores por metro cúbico.

Steinberg olhou furtivamente em volta de si, e não viu nenhuma pessoa conhecida, ergueu o aparelho, pondo ele em frente ao rosto e… Seu telefone tocou. Ele ignorou. Alguém dentro do vagão gritou alguma coisa. Ele ignorou.

A qualquer instante a luz iria espocar!

Mas antes disso, alguém esbarrou nele, se levantando de um dos assentos à frente, abarrotados de pessoas, como quem quer fugir, sair de perto dele, e Milton percebeu, de canto de olho e depois olhando diretamente, que dois seguranças, com bonés e coletes de cores berrantes, vinham em sua direção, olhando-o com raiva!

— Larga esse troço! — Um deles gritou, enquanto o outro levantava um cassetete.

Milton, que sabia o quão bem treinados eram esses tipos de profissionais no seu país, desatou a correr, claro. Ou melhor, tentou correr no engavetamento de gente que era o vagão balouçante de trem naquele momento da manhã.

Um agressivo estalo elétrico o fez perceber que alguém, certamente um dos seguranças, empunhara uma arma de choque, e instintivamente Steinberg começou a empurrar as pessoas, como o afogado que empurra a água tentando respirar! Em algum lugar seu celular tocava sem parar, ele nem se dava conta, enquanto lutava para escapar. Ele chegou ao fim do vagão e atravessou o acesso que havia entre as composições acotovelando quem estivesse pela frente. Milton chegou a levar um soco desengonçado de alguém, mas estava com a adrenalina tão alta, que mal sentiu o fraco golpe, enquanto ouvia os gritos cada vez mais selvagens dos dois seguranças, que praguejavam e xingavam Steinberg, as pessoas que atrapalhavam a perseguição, maldizendo tudo, até o mundo que era uma merda! Corriam aos tropeções, os três, enquanto as pessoas faziam o possível para sair do caminho, quando Milton bateu contra a parede no fim daquela composição, não havia acesso à próxima composição, não havia mais para onde ir. A não ser para fora! Então, empurrando as pessoas que, apavoradas, se contorciam para escapar, ele se esgueirou até a lateral onde estava a saída, agora fechada, segurou a borracha carcomida entre as duas abas da porta do vagão, enfiando ali os dedos e agarrando essas abas com os cotovelos apontados para os lados, e fez força para abrí-las. Forçou uma, duas vezes. Os seguranças cada vez mais próximos. Novamente Steinberg forçou as portas, que cederam, relutantemente no começo, mas se escancarando devido a má conservação no final! A ventania entrava, visto o trem estar em plena velocidade, e Milton parou no limiar da porta aberta, olhando o chão de brita correr abaixo. Virou o rosto, viu que o trem se aproximava de mais uma estação, logo iria desacelerar, se ao menos conseguisse atrasar os seguranças, pensou. E imediatamente se deu conta dos camelôs que pululavam entre os passageiros, sempre tentando vender seus produtos no meio daquele sufoco, pagando propina sempre para os seguranças da linha férrea, mas não raro perdendo tudo que tinham para os caras, quando estes resolviam fingir trabalho para seus superiores. Milton gritou:

— Meganha! Segura os meganhas! — Usando gíria que, em suas infindáveis viagens de trem, ouviu os camelôs usando.

Alguém, para sorte de Steinberg, perdeu o senso de perigo e resolveu agir, pondo uma perna bem no caminho do segurança que já estava quase alcançando Milton, e o cara desabou no chão, seguido do colega. A arma de choque deve ter disparado, pois ouviram-se gritos e estalos elétricos. No tumulto que se seguiu, o trem já estava quase parando na estação, e Steinberg desceu correndo, o fotômetro ainda na mão, esquecido. Girando no próprio eixo, ele percebeu que estava na estação ao lado da Quinta da Boa Vista! Poderia correr para o metrô, e desaparecer por lá. Subiu as escadarias correndo, e talvez tenha sido esse o seu erro ingênuo, pois assim que os seguranças que o perseguiram dentro do trem começaram a berrar (deveria haver um rádio quebrado em algum lugar, um monte deles para os seguranças, os quais a corrupção endêmica brasileira não deixava serem consertados nunca) outros seguranças vieram correndo de cima, e se atiraram sobre Milton, o único cara que parecia fugir, pois estava em disparada. Steinberg foi derrubado, rolando escada abaixo e batendo a cabeça.

Escuridão.

Pobre Homem Louco

Milton despertou numa espécia de enfermaria sem janelas. A porta estava aberta, ele pôde ver assim que se levantou da maca em que havia estado. E assim que ele fez isso, por esta porta entraram os dois seguranças que o haviam perseguido, seguidos de ninguém menos que Rubens, que foi dizendo:

— Foi bom ele acordar, significa que ninguém aqui vai se encrencar.

— Ele é que tá encrencado, chefia. — Disse um dos seguranças, cujo crachá Milton se esforçava mas ainda não conseguia ler.

— Ah, colega, quê isso?

E o Doutor Castilho se aproximou do segurança, despretencioso mas sério, e continuou, em um quase sussurro:

— Olha para o meu amigo. Ele está tendo uma crise, um atque de ansiedade. — e falando em um tom ainda mais baixo: — O pobre homem está louco, passando por muita coisa, não feriu ninguém além dele mesmo. Vamos esquecer isso tudo.

Milton, cuja cabeça latejava, conseguiu ouvir o murmúrio, e fez cara de quem não gostou, mas um instante depois sua expressão mudou. Estaria mesmo louco? Seria tudo aquilo imaginação dele? A certeza que tinha dentro de si, de que o mesmo dia se repetira eternamente, era pétrea, mas sua vida estava começando a ficar tão louca com aquilo, que a certeza de que ele próprio era uma pessoa sã já não era tão forte. Lembrou da Navalha de Occam, de Alice, e se calou, apenas observando enquanto Rubens conversava com os outros homens. O segurança com quem Lewroy iniciou a conversa, em certo momento, fez que sim com a cabeça, e disse:

— Está bem, doutor. Todo mundo tem seu dia de cão. É tanta sacanagem, violência e roubo que tá todo mundo com os nervos estourando.

— É mesmo. Tudo anda tão desanimador. — Concordou Rubens.

— É isso mesmo. A gente parece que tem acesso a mais informação, tipo pela Internet, mas fica sabendo que político tudo é bandido, que copa do mundo é tudo armação, que a vida podia ser bem melhor, mas se depender de quem manda, nunca será, que acaba ficando meio louco.

O outro segurança, mais calado, apenas balançou a cabeça, concordando. O primeiro segurança, mais falante, ficou um momento em silêncio, olhando para Milton, que ainda massageava a própria nuca, e então o sujeito disse:

— A gente também anda cansado. Confundimos ele com ladrão… Faz o seguinte, espera aqui que eu vou avisar a chefia e logo depois liberamos vocês, tá bem?

Lewroy abriu os braços e meneou a cabeça, dizendo simplesmente:

— Obrigado, caras.

Ambos os seguranças se foram.

Milton, constrangido, inseguro quanto a sua própria sanidade, já ia agradecer à Rubens, e perguntar como ele o encontrou, quando Lewroy o agarrou pelos ombros, o fitou olho no olho, a menos de um palmo de distância do seu rosto, e disse, num sussurro, quase selvagem:

— Milton! Escuta, cara! Alice, ela sabe de alguma coisa sobre um projeto que eu e ela participamos, e que eu não sei. Tem haver com o que você apareceu lá no meu trabalho.

— Q-que projeto?

— Uma iniciativa internacional, um experimento prático, que foi levado a cabo há alguns dias. Não interessa, só me escuta: fica longe, muito longe da Urca e da Alice, está bem? Acho que é perigoso, cara, eu tô dando um tempo, vou sair do Rio.

— Como você me achou?

— O Clinton é um amigo meu, Federal. Seu celular. Agora levanta, vem, nem vamos esperar os seguranças, não podem nos manter em cárcere, é ilegal. Vamos, eu te ajudo. Ah, toma isso, estava contigo e eles me devolveram, eu expliquei que é inofensivo, apenas um fotômetro.

Se pondo de pé, e pegando o aparelho das mãos do amigo, Steinberg fez um sinal de que podia andar sozinho, quando o outro tentou apoiá-lo. Apanhou também sua pasta tiracolo, que estava nos pés da maca, a pôs no ombro, e seguiu Rubens, que saiu na frente, mas assim que o físico pôs um pé fora da claustrofóbica enfermaria, este levou a descarga de uma arma de choque, Milton viu o clarão e ouviu o som inconfundível!

Enquanto seu amigo físico desabava no chão, os olhos de Steinberg se arregalavam! Estava encurralado!

Continua na próxima semana, não perca...

Leia a Parte 3 de "Sob o Olhar da Eternidade"

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4 years ago
It Is Not A Delorean, However When It Turns On, It Transports Me To The Era Of Utmost Convenience, Comfort

It is not a Delorean, however when it turns on, it transports me to the era of utmost convenience, comfort and safety, there is nothing like sitting behind the wheel of a Volvo 960.

No es un Delorean, sin embargo cuando enciende, me transporta a la época de la máxima comodidad, confort y seguridad, no hay nada como sentarse al volante de un Volvo 960.


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